Assistindo ao Roteiro – O Caminho para El Dorado e o design de elenco

Assistindo ao Roteiro – O Caminho para El Dorado e o design de elenco

Olá, jovem contador de histórias! Seja muito bem-vindo à Roteiro Real e, agora, ao nosso quadro Assistindo ao Roteiro!

Se você está aqui no blog, imagino que seja como eu: ama filmes a ponto de querer escrever o seu próprio. E se é assim, você já está em casa.

Nesse quadro, trago análises de filmes que, de alguma forma, nos ajudam a escrever melhor — seja porque são exemplos positivos ou, às vezes, lições do que evitar. E pra começar essa jornada, escolhi um filme que sim, foi o último que assisti, mas também porque ele é um prato cheio pra um tema que ainda não falamos aqui no blog: personagens.

O filme é:
🎬 O Caminho para El Dorado (2000)

Talvez ele não esteja no panteão dos filmes mais citados quando falamos de roteiro. Se fosse pra bancar o clássico, eu traria Chinatown (que já aparece por aqui no nosso post sobre finais). Mas, olha, El Dorado é uma verdadeira masterclass de design de elenco e construção de personagens, com um vilão que seria a alegria do Blake Snyder.


Design de elenco: conflito, contraste e química

Antes de mais nada, bora definir: Design de elenco é um conceito trazido por Robert McKee no livro Story, e significa basicamente o seguinte — os personagens de uma história não existem apenas para colorir a trama, mas para se desafiar mutuamente.

A ideia é que você crie personagens que gerem conflito uns com os outros naturalmente, porque isso gera… adivinha? Cenas.

E é isso que acontece em O Caminho para El Dorado. Temos Tulio e Miguel, que, na prática, são um protagonista dividido em dois.

  • Tulio quer dinheiro, quer fugir, quer segurança.
  • Miguel quer aventura, quer conexão, quer viver o momento.

Esses dois estão sempre em choque, mesmo sendo parceiros. Um dos momentos mais tensos é quando Tulio pede para que eles mantenham discrição e fiquem nas sombras, mas Miguel ignora completamente, se apresentando aos habitantes como uma divindade — o que inicia todo o conflito com a cidade.

Mais tarde, quando Tulio propõe fugir com Chel e levar o ouro, Miguel decide ficar e viver a vida de deus entre os nativos. É a divisão completa dos dois — e a tensão cresce tanto que eles literalmente saem na porrada em uma das cenas mais engraçadas e dolorosas do filme. Aquela troca de socos em câmera lenta é uma aula de como o humor pode carregar o drama.

No final, Miguel abre mão de El Dorado, enquanto Tulio abandona o ouro e sua fuga planejada para salvar o amigo. Eles se aproximam emocionalmente — um arco lindamente estruturado.

E tem a Chel, que entra com um objetivo próprio (ouro) e, de início, parece conspirar com Tulio. Mas o modo como ela tenta conseguir isso — chantageando os dois e usando sua inteligência para manipular os acontecimentos — gera novas fricções. Com o tempo, ela também muda: se envolve emocionalmente e ajuda na fuga, mesmo quando isso não traz vantagem pra ela.

Esse é o poder do design de elenco: todos estão em conflito o tempo todo, mas esse conflito serve à história, cria cenas ricas e aprofunda os personagens.


Make the Bad Guy Badder: como criar um vilão que desafia tudo

Agora vamos falar do nosso vilão: Tzekel-Kan, o sumo sacerdote. Esse personagem é um exemplo didático do que Blake Snyder chama de “Make the Bad Guy Badder” em Save the Cat.

A lógica é simples: se você quer que o público torça de verdade pelo herói, faça o vilão ainda pior. Exagere. Aumente a ameaça. E é isso que Tzekel-Kan faz com maestria.

Logo de cara, ele prende Chel, uma ladra aparentemente indefesa, e ameaça puni-la com crueldade. Depois, ele usa o medo como ferramenta política, reivindicando poderes divinos com o objetivo de aplicar punições violentas.

Quando Tulio e Miguel vencem o jogo de bola, o sacerdote exige o sacrifício do time perdedor — o que choca até os protagonistas. Mais tarde, ao perder o controle, ele não só dobra sua aposta fanática como invoca magia negra, sacrifica um homem com seus próprios poderes e assume uma forma monstruosa para destruir a cidade vizinha, acreditando que está fazendo a vontade dos deuses.

A cada passo, ele fica pior. Não há ambiguidade, não há redenção. E é isso que o torna tão eficiente como vilão.

Ele é a sombra que cresce enquanto os heróis buscam a luz. Ele serve para testar a amizade, a coragem e os valores de Tulio e Miguel até o último segundo.


E isso fica ainda mais claro quando olhamos para outro filme com estrutura clássica: Pretty Woman (Uma Linda Mulher).

Lembra do personagem Phillip Stuckey? Ele é o advogado nojento e arrogante, interpretado por Jason Alexander. Desde o início, ele representa a visão fria e calculista dos negócios, e mais tarde, deixa transbordar sua misoginia e ganância. Quando percebe que Edward (o protagonista) está se afastando desse mundo e se apaixonando por Vivian, Phillip tenta usar sua influência e até mesmo a força para “corrigir” isso — ele tenta abusar de Vivian, aliás, numa das cenas mais pesadas do filme.

Mas note: ele não muda. Ele só piora.

A cada nova cena, o personagem se mostra mais nojento, mais vilão, mais repulsivo. Ele serve como contraste direto à transformação de Edward, que aprende a se conectar emocionalmente com os outros e a abrir mão do controle total. Phillip não tem arco porque ele é o obstáculo estático que reforça a curva dramática de quem precisa mudar.

E esse é exatamente o papel de Tzekel-Kan em O Caminho para El Dorado. Ele não está ali pra evoluir. Está ali pra pressionar Miguel, Tulio e Chel a fazerem escolhas difíceis, a encararem seus próprios limites. Ele representa a linha que os protagonistas se recusam a cruzar — e por isso mesmo, é importante que ele continue intransigente e cada vez mais extremo.


Os arcos de personagem em El Dorado

Vamos falar agora sobre o que realmente faz o público se conectar com os protagonistas: o arco de transformação.

  • Tulio começa o filme como um golpista racional, sempre planejando cada passo. Sua vida é fugir com dinheiro, sem se apegar a nada nem ninguém. Mas ao longo do filme, especialmente vendo Miguel se entregar à cultura local, Tulio começa a se importar — com as pessoas, com Chel, com a cidade. No fim, ele abre mão do ouro e do seu plano de fuga para salvar o amigo. Essa escolha define sua mudança.
  • Miguel, por outro lado, é um idealista que quer viver aventuras e experiências novas. Mas com o tempo, ele percebe que precisa sacrificar seus sonhos pessoais pelo bem comum. Quando a cidade precisa de ajuda, ele desiste de ser um deus e volta para o mundo real, completando um arco de amadurecimento.
  • Chel também passa por um arco mais sutil: de uma oportunista espertinha para uma parceira de verdade. Ela se aproxima de Tulio como uma forma de escapar e ganhar vantagem, mas termina o filme escolhendo ficar ao lado dele, mesmo sem El Dorado.
  • Tzekel-Kan? Zero transformação. E é justamente isso que reforça o papel dele como antagonista. Como vimos também em Pretty Woman, vilões fixos são úteis porque mostram ao protagonista o que acontece com quem não muda. O advogado babaca daquele filme não tem arco — e é por isso que Edward decide seguir outro caminho.

Em narrativa, o vilão sem transformação é o espelho congelado. Ele mostra o que o herói poderia ser, caso não aprendesse nada.


Personagens que mudam, vilões que não

O Caminho para El Dorado pode parecer só uma animação divertida, mas é uma baita referência pra quem quer aprender sobre construção de personagens, design de elenco e o papel do vilão na narrativa.

Personagens bons mudam. Vilões bons não.

E a gente, roteirista, aprende observando isso. Então, da próxima vez que for assistir a um filme, já sabe: assista com o olho de quem escreve. Porque cada cena é uma lição — e toda boa história começa com um bom conflito.

Nos vemos no próximo “Assistindo ao Roteiro”! Aqui, é roteiro na real.

Continue lendo. Continue estudando. Continue escrevendo

Renan Wagner

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